sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Para sempre bailarina

Ela pensou que fosse ser para sempre bailarina, aquela que nunca tinha nada. E vivia rodopiando no ar, como se não tivesse roupa. Sozinha no quarto vazio e sem janelas, subia nas pontas dos pés descalços, como se não tivesse chão e ela pudesse flutuar. Era como se morasse naquela casa muito engraçada, onde não tinha teto, não tinha nada. Lá ela suspendia os braços e, depois de apontar para o céu, juntava os dedos das mãos criando um arco imaginário, muito mais belo que o Arco do Triunfo.

Mas um dia ela acordou de um jeito tão diferente do seu jeito de sempre acordar. Percebeu que estava usando um vestido vermelho cheirando a guardado, que pesava no seu corpo e impedia que ela desse os seus passos. Ao olhar para o lado, viu que agora o quarto tinha janelas. E que todos espiavam o que ela fazia. Seus braços pesavam e já não conseguiam apontar para o céu.

Ela não sabia, mas começava a deixar de ser a bailarina. Também, era desejo tão secreto, aquele de querer dançar. Não sabia que era vontade de ser, ao invés de vontade de ter. Ela não precisava ter aplausos ao final do espetáculo. Ela não queria ter foto e nome na revista. Ela não queria ter dinheiro, fama, sucesso. Na verdade, ela nem sabia que existiam essas coisas. Nem tampouco que poderia tê-las. Mas quando soube que existiam, ela as quis como nunca tinha querido antes.

E de tanto desejar ter, ela começou a possuir as coisas. Foi aí que descobriu que tinha de ter cuidado com os seus desejos dali pra frente, porque eles tinham uma capacidade assustadora de se realizarem.

A menina desejou ter amigos, e os conquistou. A menina quis ter aniversário. E teve. Um monte deles. Alguns surpresa, com os amigos que ela ganhou torcendo pelo choro que ela também aprendeu a ter. E após ganhar os presentes e os cartões, vieram também os anos e a menina começou a ter rugas, cremes de hidratação e protetor solar. Teve o primeiro beijo, o primeiro escuro, o primeiro porre, o primeiro tudo. Ganhou diploma, carteira assinada e seguro desemprego. Namorado e as cobranças dos amigos que, depois de conquistados, desejavam atenção. E as contas no final do mês e os milhares de compromissos de todos os dias.

E começou a ter medo, um grande medo de dar vertigem e de tirar o sono. Era o medo de que não desse certo. O medo do fracasso. O medo do abandono e da perda. O medo do preço que teria de pagar por ter começado a ter as coisas. O medo da condenação por ter deixado de ser a bailarina. O medo do assalto e do sequestro por ter saído do quarto e agora precisar andar pelas ruas e atravessar os sinais. Sinais que não diziam claramente se estavam pedindo para que ela parasse ou para que ela seguisse. Mas ela tinha de atravessá-los. O medo da paralisia, da inércia, do salto e da queda. E o medo de não ter mais medo. O medo da morte. Era tão mais fácil ser o que era antes. Era tão mais simples não ter nada.

Mas ela sabia, com a ingenuidade da menina que ela ainda tinha dentro de si, que era mais bonito e muito mais digno ser a bailarina, ser aquela que não tem. O que ela não sabia é que quando a gente é uma coisa, nunca deixa de ser. Ela podia até deixar de ter. Perder os amigos, o emprego, o namorado. E porque todo dia perdia alguma coisa, todo dia voltava a ser a bailarina. Era quando esticava um pouco o braço para pentear os cabelos pela manhã, quando dava um passo mais apressado para pegar o ônibus, quando subia na ponta dos pés para alcançar o produto na prateleira do supermercado.

Ah, não importava se rodopiando no seu quarto ou se cambaleando pelos becos da vida. O mundo é um moinho. Nas rodas que fazia o vento, no meio daquela tempestade de poeira que leva e traz todas as coisas, a menina dançava e não sabia. Ela era para sempre bailarina. Mas agora, cada passo que dava era uma dor que sentia.

Clara.

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