sábado, 22 de maio de 2010

Subreptício

"Ai, meu Deus! Como tudo está esquisito hoje! E pensar que ontem tudo estava normal. Será que eu mudei durante a noite? Vamos ver: eu era a mesma quando me levantei esta manhã? Estou quase me recordando que me sentia um pouquinho diferente. Mas, se
eu não sou mais a mesma, a pergunta é: ‘Quem afinal eu sou’? Ah, aí é que está o problema!
[...]
Quem sou eu, então? Respondam-me primeiro, e então, se eu gostar de ser essa pessoa, voltarei; se não, ficarei aqui embaixo até que eu seja outra."

Subreptício: aquilo obtido de maneira fraudulenta. Por exemplo, roubar palavras de outro para tentar explicar algo que nem assim se explica.

Sub: elemento indicador de inferioridade, coisa baixa.

Subrepticiamente, somos e tentamos ser. Quem disse que é fácil essa vida de fraudes e crimes? Baixaria. Por isso que a gente está sempre por aí, escondido debaixo de alguma coisa: uma máscara, uma saia, uma mesa, uma cama, uma pessoa. Dá licença que preciso voltar para o esconderijo de mim.


Clara.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Menos pó

"Isso de estar sendo, tempo vivo, estar sendo" *

Altivez da morte. E se amante não sabes o sol do querer, é que a luz levantou-se mais cedo, fez reentrâncias, enganou as folhas, as árvores, o dia, claridade que devia ser chuva, e a chuva veio, esgarçando-se enquanto água, agredindo a luz e a vida, encharcando tudo, poço pesado, o dia, barro sujo e bestiário, pisar e nauseares, úmido diceramento, enganou-se de morte, foi-se embora com o sol. Talvez em outros mundos, luz, água, claro, mar. Aqui a vida é barro, terra molhada e suja, o que seca, mata e faz reviver.

O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? **

Quando você faz a minha carne triste quase feliz...

Você me faz parecer menos só, menos sozinho
Você me faz parecer menos pó, menos pozinho ***


* Hilda Hilst

** Padre Antônio Vieira

*** Zeca Baleiro


Clara.


domingo, 9 de maio de 2010

Gaste tudo em fantasia

O Amor dança em um baile à fantasia. Ele é o dono da festa e gosta de brincar com seus convidados. Se veste de Cinderela e sapatinho de cristal para fugir e poder ser encontrado. Mas também gosta de pregar truques em quem o está observando. Nessas horas, coitados dos mais ingênuos: ele se faz de mágico, pega sua cartola e desaparece sem deixar rastros. Sua fantasia preferida é a de equilibrista, pois, em se tratando de Amor, bom mesmo é descobrir como andar sobre a corda bamba. Mas é só desviar os olhos da corda que lá vai ele, com sombrinha na mão, dançando alegre um frevo bem colorido. Ah, você não conhece o Amor. Ele é palhaço rindo de nós, sua plateia; mendigo pedindo um beijo de esmola; puta se oferecendo pela bagatela de um cigarro; fugitivo da cadeia procurando uma viela qualquer onde possa se esconder; enfermeira desejando curar feridas; pirata em busca do tesouro perdido. O Amor é versátil, combina com qualquer fantasia. Às vezes se faz de Bela, outras vezes é a própria Fera; em alguns minutos se disfarça de Chapeuzinho Vermelho para no instante seguinte se vestir de Lobo Mau. Mas como na história d'O Médico e o monstro, ele perde o controle de si e nunca sabe a fantasia que estará usando na marchinha seguinte. O Pierrot ou a Colombina? Não importa, é sempre a mesma a máscara negra.
Clara.

domingo, 2 de maio de 2010

Não é de se deter

Você tenta conter, mas não consegue. Chega de repente, se amontoa na sua cabeça, perturba, cascavia um espaço qualquer pra se acomodar. E é um começo inesperado, as primeiras palavras soando como um baque repentino. O choro de um bebê após o parto, seu corpo ainda cheio de tecidos ensanguentados. Destino. O ladrão que chega sem avisar. O amigo mais íntimo, que adentra sua casa e sequer pede licença. De um jeito ou de outro, invasões bárbaras. Os dois lados de uma mesma moeda.
Sua coragem para abortar o que a natureza decidiu que deveria existir. Sua passividade em aceitar o que a vida lhe entregou de bandeja ou lhe fez engolir em seco, cru ou bem-passado. Esse seu protecionismo, o guarda-chuva sempre na bolsa, o cabelo escovado na definitiva e, ainda assim, o medo de permitir se molhar. A distração, o esquecimento, o descuido. Aquele dia em que a chuva te pegou no meio do caminho de volta pra casa e você só conseguiu correr e resmungar enquanto tudo o que restava a fazer era tocar um tango argentino ou seguir just singin' in the rain.
O extintor de incêndio no lado direito do seu carro, pronto para lhe socorrer ao mínimo sinal de fumaça. Você morta de cansaço às 2h:37 da madrugada, sem coragem de verificar se realmente baixou a válvula do bujão de gás, um desejo secreto e inconsciente de que tudo se exploda.
A vassoura atrás da porta, afinal, você sobrevive muito melhor sozinha. O Santo Antônio virado de ponta-cabeça e escondido na última gaveta do armário, seu jeito inconfessável de se exibir pra solidão – artimanhas de quem acha que sofrer é amar demais.
Sua capacidade de chegar bem perto da linha aterrorizante e falsa do limite, se equilibrar sobre ela ou até mesmo atravessá-la, sabendo que do outro lado não encontrará nenhum pote de ouro, mas apenas o começo de uma outra linha, mais limite, mais falsa e mais bamba que a anterior.
O destino. Aquele senhor barrigudo e rabugento, tomando sua cerveja e fumando seu cigarro na mesa enferrujada do bar decadente, ele e o bar tão inevitáveis quanto o beco sem saída onde os dois se encontram. Você no final daquele beco, perdida nas armadilhas do labirinto que te fez chegar ali. Sua decisão por subir nas paredes, voltar pelos caminhos tortos e/ou se manter eternamente à margem dos que seguem as veredas estreitas que levam ao céu.
Sua distração e o trombadinha da esquina aguardando o momento oportuno de esbarrar com você e lhe atirar contra o solo, estilhaços de suas lentes por todos os lados. Você devia ter visto, mas não viu. Os três cavalheiros a lhe acudir, nenhum dos três chapéu na mão. Seu conforto em se manter na queda. Esse medo de ser feliz. Essa impulsividade na entrega. Esse desviar-se dos encontros. Esse ininterrupto esperar pelo novo.
O destino. Aquele que nasce e cresce contigo. O teu pai e o teu filho. O que gera e é gerado dos teus dias. O começo e o fim, os dois fundindo-se na mesma pessoa você. A moeda girando sobre a mesa até o momento de mostrar a cara e te coroar com a sorte. Vida. O que a gente precisa atravessar para chegar do outro lado.

"Só um amor que dura até o outro lado é um amor pra vida toda" - Adriana Falcão

"E não pensai que podeis dirigir o curso do amor, pois o amor, se achar que mereceis, dirige o vosso curso" - Khalil Gibran
Clara.