segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Para um dia qualquer


"Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência."

Pablo Neruda


E cada um que procure pelo poço onde sua luz se perde ou se guarda, dia a dia.


Clara ;)

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Para sempre bailarina

Ela pensou que fosse ser para sempre bailarina, aquela que nunca tinha nada. E vivia rodopiando no ar, como se não tivesse roupa. Sozinha no quarto vazio e sem janelas, subia nas pontas dos pés descalços, como se não tivesse chão e ela pudesse flutuar. Era como se morasse naquela casa muito engraçada, onde não tinha teto, não tinha nada. Lá ela suspendia os braços e, depois de apontar para o céu, juntava os dedos das mãos criando um arco imaginário, muito mais belo que o Arco do Triunfo.

Mas um dia ela acordou de um jeito tão diferente do seu jeito de sempre acordar. Percebeu que estava usando um vestido vermelho cheirando a guardado, que pesava no seu corpo e impedia que ela desse os seus passos. Ao olhar para o lado, viu que agora o quarto tinha janelas. E que todos espiavam o que ela fazia. Seus braços pesavam e já não conseguiam apontar para o céu.

Ela não sabia, mas começava a deixar de ser a bailarina. Também, era desejo tão secreto, aquele de querer dançar. Não sabia que era vontade de ser, ao invés de vontade de ter. Ela não precisava ter aplausos ao final do espetáculo. Ela não queria ter foto e nome na revista. Ela não queria ter dinheiro, fama, sucesso. Na verdade, ela nem sabia que existiam essas coisas. Nem tampouco que poderia tê-las. Mas quando soube que existiam, ela as quis como nunca tinha querido antes.

E de tanto desejar ter, ela começou a possuir as coisas. Foi aí que descobriu que tinha de ter cuidado com os seus desejos dali pra frente, porque eles tinham uma capacidade assustadora de se realizarem.

A menina desejou ter amigos, e os conquistou. A menina quis ter aniversário. E teve. Um monte deles. Alguns surpresa, com os amigos que ela ganhou torcendo pelo choro que ela também aprendeu a ter. E após ganhar os presentes e os cartões, vieram também os anos e a menina começou a ter rugas, cremes de hidratação e protetor solar. Teve o primeiro beijo, o primeiro escuro, o primeiro porre, o primeiro tudo. Ganhou diploma, carteira assinada e seguro desemprego. Namorado e as cobranças dos amigos que, depois de conquistados, desejavam atenção. E as contas no final do mês e os milhares de compromissos de todos os dias.

E começou a ter medo, um grande medo de dar vertigem e de tirar o sono. Era o medo de que não desse certo. O medo do fracasso. O medo do abandono e da perda. O medo do preço que teria de pagar por ter começado a ter as coisas. O medo da condenação por ter deixado de ser a bailarina. O medo do assalto e do sequestro por ter saído do quarto e agora precisar andar pelas ruas e atravessar os sinais. Sinais que não diziam claramente se estavam pedindo para que ela parasse ou para que ela seguisse. Mas ela tinha de atravessá-los. O medo da paralisia, da inércia, do salto e da queda. E o medo de não ter mais medo. O medo da morte. Era tão mais fácil ser o que era antes. Era tão mais simples não ter nada.

Mas ela sabia, com a ingenuidade da menina que ela ainda tinha dentro de si, que era mais bonito e muito mais digno ser a bailarina, ser aquela que não tem. O que ela não sabia é que quando a gente é uma coisa, nunca deixa de ser. Ela podia até deixar de ter. Perder os amigos, o emprego, o namorado. E porque todo dia perdia alguma coisa, todo dia voltava a ser a bailarina. Era quando esticava um pouco o braço para pentear os cabelos pela manhã, quando dava um passo mais apressado para pegar o ônibus, quando subia na ponta dos pés para alcançar o produto na prateleira do supermercado.

Ah, não importava se rodopiando no seu quarto ou se cambaleando pelos becos da vida. O mundo é um moinho. Nas rodas que fazia o vento, no meio daquela tempestade de poeira que leva e traz todas as coisas, a menina dançava e não sabia. Ela era para sempre bailarina. Mas agora, cada passo que dava era uma dor que sentia.

Clara.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Hoje é dia de Maria

Por que ela acaba assim comigo? Talvez porque não assuma, mas é Maria e anda assim como eu:

"Maria anda assim como eu:
Impossibilitada de fazer
tudo o que quer.
Tem mãos amarradas,
ar de doente, olhar de demente,
cansada.
Maria vai acabar como eu: covarde nas decisões,
amante das cousas indefinidas
e querendo compreender suicidas.
Maria vai acabar assim sem rumo,
andando por aí,
fazendo versos
e tendo acessos nostálgicos.
Maria vai acabar
bem tristemente.
De qualquer jeito,
lendo jornais,
tendo marido indefinido.
(Não sei por que Maria
quer compreender
muito, demais,
a vida do suicida.
E Maria vai acabar
se fartando de vida.)
A vida, coitada,
é camarada, gosta de Maria,
quer fazer Maria viver mais,
Porque Maria é desgraçada.
Quer deixá-la para o fim,
assim à mostra,
e eu francamente não entendo
porque Maria não gosta
da vida"

by Hilda Hilst (tinha como ser outra?)

E eu, Maria Clara, Clara Maria, francamente não entendo por que tenho essas minhas crises de Maria. Mas fazer o quê? Nascida Maria, irmã de Maria, filha de Maria e neta de Maria, tinha de ser Maria.

História que lembro de quando era Mariazinha:

Minha filha, dizem que em casa que tem três Marias o diabo não entra. Aqui ele não deve passar nem na calçada, né? Tem logo quatro [Marias].

hehe

Clara.

sábado, 22 de maio de 2010

Subreptício

"Ai, meu Deus! Como tudo está esquisito hoje! E pensar que ontem tudo estava normal. Será que eu mudei durante a noite? Vamos ver: eu era a mesma quando me levantei esta manhã? Estou quase me recordando que me sentia um pouquinho diferente. Mas, se
eu não sou mais a mesma, a pergunta é: ‘Quem afinal eu sou’? Ah, aí é que está o problema!
[...]
Quem sou eu, então? Respondam-me primeiro, e então, se eu gostar de ser essa pessoa, voltarei; se não, ficarei aqui embaixo até que eu seja outra."

Subreptício: aquilo obtido de maneira fraudulenta. Por exemplo, roubar palavras de outro para tentar explicar algo que nem assim se explica.

Sub: elemento indicador de inferioridade, coisa baixa.

Subrepticiamente, somos e tentamos ser. Quem disse que é fácil essa vida de fraudes e crimes? Baixaria. Por isso que a gente está sempre por aí, escondido debaixo de alguma coisa: uma máscara, uma saia, uma mesa, uma cama, uma pessoa. Dá licença que preciso voltar para o esconderijo de mim.


Clara.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Menos pó

"Isso de estar sendo, tempo vivo, estar sendo" *

Altivez da morte. E se amante não sabes o sol do querer, é que a luz levantou-se mais cedo, fez reentrâncias, enganou as folhas, as árvores, o dia, claridade que devia ser chuva, e a chuva veio, esgarçando-se enquanto água, agredindo a luz e a vida, encharcando tudo, poço pesado, o dia, barro sujo e bestiário, pisar e nauseares, úmido diceramento, enganou-se de morte, foi-se embora com o sol. Talvez em outros mundos, luz, água, claro, mar. Aqui a vida é barro, terra molhada e suja, o que seca, mata e faz reviver.

O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? **

Quando você faz a minha carne triste quase feliz...

Você me faz parecer menos só, menos sozinho
Você me faz parecer menos pó, menos pozinho ***


* Hilda Hilst

** Padre Antônio Vieira

*** Zeca Baleiro


Clara.


domingo, 9 de maio de 2010

Gaste tudo em fantasia

O Amor dança em um baile à fantasia. Ele é o dono da festa e gosta de brincar com seus convidados. Se veste de Cinderela e sapatinho de cristal para fugir e poder ser encontrado. Mas também gosta de pregar truques em quem o está observando. Nessas horas, coitados dos mais ingênuos: ele se faz de mágico, pega sua cartola e desaparece sem deixar rastros. Sua fantasia preferida é a de equilibrista, pois, em se tratando de Amor, bom mesmo é descobrir como andar sobre a corda bamba. Mas é só desviar os olhos da corda que lá vai ele, com sombrinha na mão, dançando alegre um frevo bem colorido. Ah, você não conhece o Amor. Ele é palhaço rindo de nós, sua plateia; mendigo pedindo um beijo de esmola; puta se oferecendo pela bagatela de um cigarro; fugitivo da cadeia procurando uma viela qualquer onde possa se esconder; enfermeira desejando curar feridas; pirata em busca do tesouro perdido. O Amor é versátil, combina com qualquer fantasia. Às vezes se faz de Bela, outras vezes é a própria Fera; em alguns minutos se disfarça de Chapeuzinho Vermelho para no instante seguinte se vestir de Lobo Mau. Mas como na história d'O Médico e o monstro, ele perde o controle de si e nunca sabe a fantasia que estará usando na marchinha seguinte. O Pierrot ou a Colombina? Não importa, é sempre a mesma a máscara negra.
Clara.

domingo, 2 de maio de 2010

Não é de se deter

Você tenta conter, mas não consegue. Chega de repente, se amontoa na sua cabeça, perturba, cascavia um espaço qualquer pra se acomodar. E é um começo inesperado, as primeiras palavras soando como um baque repentino. O choro de um bebê após o parto, seu corpo ainda cheio de tecidos ensanguentados. Destino. O ladrão que chega sem avisar. O amigo mais íntimo, que adentra sua casa e sequer pede licença. De um jeito ou de outro, invasões bárbaras. Os dois lados de uma mesma moeda.
Sua coragem para abortar o que a natureza decidiu que deveria existir. Sua passividade em aceitar o que a vida lhe entregou de bandeja ou lhe fez engolir em seco, cru ou bem-passado. Esse seu protecionismo, o guarda-chuva sempre na bolsa, o cabelo escovado na definitiva e, ainda assim, o medo de permitir se molhar. A distração, o esquecimento, o descuido. Aquele dia em que a chuva te pegou no meio do caminho de volta pra casa e você só conseguiu correr e resmungar enquanto tudo o que restava a fazer era tocar um tango argentino ou seguir just singin' in the rain.
O extintor de incêndio no lado direito do seu carro, pronto para lhe socorrer ao mínimo sinal de fumaça. Você morta de cansaço às 2h:37 da madrugada, sem coragem de verificar se realmente baixou a válvula do bujão de gás, um desejo secreto e inconsciente de que tudo se exploda.
A vassoura atrás da porta, afinal, você sobrevive muito melhor sozinha. O Santo Antônio virado de ponta-cabeça e escondido na última gaveta do armário, seu jeito inconfessável de se exibir pra solidão – artimanhas de quem acha que sofrer é amar demais.
Sua capacidade de chegar bem perto da linha aterrorizante e falsa do limite, se equilibrar sobre ela ou até mesmo atravessá-la, sabendo que do outro lado não encontrará nenhum pote de ouro, mas apenas o começo de uma outra linha, mais limite, mais falsa e mais bamba que a anterior.
O destino. Aquele senhor barrigudo e rabugento, tomando sua cerveja e fumando seu cigarro na mesa enferrujada do bar decadente, ele e o bar tão inevitáveis quanto o beco sem saída onde os dois se encontram. Você no final daquele beco, perdida nas armadilhas do labirinto que te fez chegar ali. Sua decisão por subir nas paredes, voltar pelos caminhos tortos e/ou se manter eternamente à margem dos que seguem as veredas estreitas que levam ao céu.
Sua distração e o trombadinha da esquina aguardando o momento oportuno de esbarrar com você e lhe atirar contra o solo, estilhaços de suas lentes por todos os lados. Você devia ter visto, mas não viu. Os três cavalheiros a lhe acudir, nenhum dos três chapéu na mão. Seu conforto em se manter na queda. Esse medo de ser feliz. Essa impulsividade na entrega. Esse desviar-se dos encontros. Esse ininterrupto esperar pelo novo.
O destino. Aquele que nasce e cresce contigo. O teu pai e o teu filho. O que gera e é gerado dos teus dias. O começo e o fim, os dois fundindo-se na mesma pessoa você. A moeda girando sobre a mesa até o momento de mostrar a cara e te coroar com a sorte. Vida. O que a gente precisa atravessar para chegar do outro lado.

"Só um amor que dura até o outro lado é um amor pra vida toda" - Adriana Falcão

"E não pensai que podeis dirigir o curso do amor, pois o amor, se achar que mereceis, dirige o vosso curso" - Khalil Gibran
Clara.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Pronto para o encontro?

Você fecha os olhos e começa o jogo. Todos se escondem. Você dá o compasso da sua própria espera. É preciso dar tempo ao tempo. Para que possam se esconder. Mas também é preciso sair a busca. Para que você possa encontrar. E antes que termine a contagem – os números são infinitos, meu bem – eis que você encontra. E eis que é encontrado. Nesse jogo, todos se disfarçam, se encobrem, se fantasiam. Mas você, nessa altura do campeonato, já aprendeu: a razão do esconderijo é o desejo do encontro. E a razão do encontro é a necessidade de uma nova procura. Ainda que seja uma expedição de caça ao próprio objeto já encontrado. Afinal, são detalhes tão pequenos a se desvendar... Jogo de esconde-esconde com três regras básicas:

1 – o amor é velho
Mais velho que as tábuas de Maomé, muito mais antigo que a história de Adão e Eva.

O amor zomba dos anos
.*

2 – o amor é mutante
O tempo transforma tudo, tanto as regras do jogo quanto a paisagem vista da janela.

O amor anda no rastro dos ciganos.*

3 – O amor é sujo
Nenhum jogo consegue ser limpo.

O amor é poço onde se despejam lixos e brilhantes.*


Obs.: *O amor é velho, menina. Música do Tom Zé. É só procurar no youtube que você encontra.

Clara.

domingo, 25 de abril de 2010

Onde já não caibo mais

Porque quero fazer de mim um lugar maior pra se viver. Porque quero fazer de mim mais amigos. Porque quero fazer de mim algo mais do que já fiz. Porque quero fazer de mim tantas que me possa dividir sem penar. Porque quero fazer de mim aquilo que já fui e aquilo que serei. Porque quero fazer de mim o que não vou conseguir ser. Porque quero fazer de mim um barco a carregar comigo tudo aquilo que já tive. Porque quero fazer de mim uma grande voz cantando, ao mesmo tempo e sempre, todas as músicas que são eu. Porque quero fazer de mim mais do que uma cidade. Porque quero fazer de mim mais do que um bar que fecha. Porque quero fazer de mim mais do que dura uma noite. Porque quero fazer de mim uma farsa maior do que um sonho infinito. Porque quero fazer de mim mais do que sentimento. Porque quero fazer de mim corpo que não se cansa. Porque quero fazer de mim fogo que nunca se apaga. Porque quero fazer de mim alma que se dá e sempre tem alguém pra receber. Porque quero fazer de mim pássaro que tem céu e gaiola. Porque quero fazer de mim o que do mundo não depende. Porque quero fazer de mim tudo que não pode ser. Porque quero fazer de mim eternidade. Porque quero fazer de mim o impossível carinho. E isso, isso não tem cabimento, menina. Isso não cabe no ser. Ou seria apenas no seu ser que isso não cabe?
PS.: Porque NÃO quero fazer de mim o que passa agosto esperando setembro.

Clara.